Capítulo 3 Resultados
Na metodologia, foram apresentados detalhes sobre captura e classificação dos processos. Neste capítulo, foram incluídos os resultados finais, de acordo com as questões norteadoras da pesquisa. O capítulo foi organizado em duas seções. A primeira apresenta detalhes sobre a base de dados de análise. A segunda descreve os resultados obtidos e suas interpretações.
3.1 Base de dados
A base final possui apenas uma unidade amostral: o processo, ou seja, cada linha representa um processo e cada coluna, uma característica desse processo. A Tabela 3.1 apresenta as principais variáveis analisadas.
nomes_colunas | descricao |
---|---|
id_processo | Identificação do processo |
dt_dist | Data de distribuição do processo |
classe | Classe processual |
assunto | Assunto processual |
vara | Vara |
comarca | Comarca |
juiz | Juiz |
tipo_vara | Tipo de vara |
tipo_acao | Tipo de ação |
tutela_teve | Presença de decisão de tutela antecipada |
dt_tutela | Data da decisão de tutela antecipada |
txt_tutela | Texto na íntegra da decisão de tutela antecipada |
natjus_tutela | Presença de citação a parecer da NATJUS na decisão de tutela antecipada |
decisao_tutela | Resultado da decisão de tutela antecipada |
sentenca_teve | Presença de sentença |
dt_sentenca | Data da sentença |
txt_sentenca | Texto na íntegra da sentença |
citou_resp_stj | Presença de citação a Recurso Especial do STJ na sentença |
citou_rex_stf | Presença de citação a Recurso Extraordinário do STF na sentença |
natjus_sentenca | Presença de citação ao parecer da NATJUS na sentença |
decisao_sentenca | Resultado da decisão da sentença |
recurso_teve | Presença de recurso |
decisao_reforma | Resultado da decisão de reforma |
txt_decisao_recurso | Texto na íntegra da decisão do recurso |
reforma_unanime | Presença de votação unânime na decisão do recurso |
dt_inicio_cumprimento | Data do início do cumprimento da sentença |
conciliacao_tentativa | Presença de tentativa de conciliação |
conciliacao_resultado | Resultado da conciliação |
tipo_autor | Tipo de autor |
n_passivo | Quantidade de sujeitos no polo passivo |
recurso_polo | Tipo de parte que entrou com o recurso (polo passivo ou ativo da ação de primeira instância) |
n_ativo | Quantidade de sujeitos no polo ativo |
3.1.1 Lacunas da base
Como as variáveis foram extraídas de forma automatizada, algumas informações estavam inacessíveis. As informações que estavam inacessíveis eram aquelas relacionadas aos documentos das partes, a saber, a petição inicial, a contestação e os recursos. A ausência desses documentos prejudicou as análises em alguns casos, ou até as impossibilitou em outros. Por exemplo, ao determinar se houve pedido de tutela antecipada, não foi possível extrair isso das petições iniciais. No lugar, usamos as próprias decisões interlocutórias que decidiam sobre as tutelas. Isso gera um problema porque é possível que um processo tenha tido um pedido, mas ainda não tenha tido a sentença. Esses casos ficaram de fora. Um outro exemplo, agora para ilustrar uma análise que ficou impossibilitada, foi a análise de quem é a parte que entrou com o recurso: o autor da inicial ou o réu.
A descrição detalhada de quais variáveis ficaram com lacunas está no Apêndice A.
3.2 Análises
3.2.1 Pergunta 1: Quais são os temas discutidos nos processos que envolvem saúde na JFCE?
Foram identificados 83 assuntos na base. Muitos desses assuntos, porém, tinham poucos casos. Por isso, agrupamos todos os assuntos com menos de 30 casos em um grupo chamado “Outros”. Apenas os três assuntos mais relevantes contabilizam por 75.99% dos casos, sendo que o primeiro assunto sozinho (Fornecimento de Medicamentos), contabiliza por 45.81% dos casos. Na Figura 3.1 vemos a distribuição de assuntos.
3.2.2 Pergunta 2: Quais são os litigantes mais comuns na judicialização da saúde e os representantes?
Os casos de judicialização da saúde na Justiça Federal possuem uma estrutura de partes no litígio muito similar, em que há, de um lado, uma pessoa física, e do outro, o Poder Público. Como as pessoas físicas são litigantes eventuais, não é possível indicar um único nome de litigante para essa análise. Vemos na Tabela 3.2 que, via de regra, cada pessoa possui associada a seu nome um único processo. Os raros casos com mais de 7 processos por parte representam na verdade a Defensoria Pública, o Ministério Público (em geral), o Ministério Público do Estado do Ceará e a Santa Casa de Misericórdia de Sobral.
Quantidade de processos por cada partes | Quantidade de partes por quantidade de processo |
---|---|
1 processo | 3103 partes |
2 processos | 175 partes |
3 processos | 20 partes |
4 processos | 1 parte |
5 processos | 1 parte |
7 processos | 1 parte |
9 processos | 1 parte |
88 processos | 1 parte |
1649 processos | 1 parte |
Então, no lugar de analisar a quantidade de processos pelo nome da parte, podemos classifica-los de acordo com uma tipologia de partes, a saber: particulares, representados por seus advogadores particulares, pela a Defensoria Pública ou pelo Ministério Público. Na Figura 3.2, encontramos a distribuição de casos por tipo de autor.
Vemos, nesta figura, uma clara predominância da Defensoria Pública na litigância sobre acesso à justiça. Chama a atenção também os poucos casos em que o Ministério Público atua, em comparação com a Defensoria. Isso se explica pela natureza das ações que cada instituição ajuiza, conforme vemos na Figura 3.3.
Esta figura explica o porquê da discrepância de processos iniciados por advogados particulares e pela Defensoria Pública em comparação com o Ministério Público. O que acontece é que o MP, ao invés de ajuizar uma ação para cada indivíduo interessado, ele ajuiza ações coletivas, desempenhando, portanto, uma atuação mais focalizada em casos de grande relevância, do que auxiliando na prestação jurisdicional de casos isolados e individuais.
3.2.3 Pergunta 3: Houve tentativa de conciliação?
Uma pergunta relevante a respeito da judicialização da saúde é o grau de conciliação entre os beneficiários do SUS e o Poder Público. O que se observa é o baixíssimo grau de tentativa de conciliação, conforme a Figura 3.4.
Por falta de dados, não foi possível mensurar, dessas poucas tentativas de conciliações, qual foi o seu grau de sucesso.
3.2.4 Pergunta 4: Como se dá o desfecho dos julgamentos?
Para compreendermos a estrutura dos desfechos dos julgamentos, temos de olhar, não apenas para a sentença, mas para as decisões de tutela antecipada. Isso é uma especificidade dos casos de judicialização da saúde, porque em todos os casos há um pedido de tutela antecipada. Esses pedidos servem para provocar o Judiciário a dar uma decisão provisória sobre o recebimento ou não de determinado medicamento/tratamento/serviço que não pode aguardar o tempo da sentença, pois quanto mais tempo se passa, maiores são as complicações para a pessoa que está solicitando o serviço, podendo inclusive chegar ao óbito da parte. Dado, então, que a decisão de tutela antecipada julga os mesmos pedidos que a sentença irá julgar, é preciso olhar para as decisões de tutela antecipada atentamente. Na Figura 3.5 observamos a quantidade de processos com alguma decisão de antecipação de tutela.
Dos casos que tiveram alguma decisão de tutela antecipada, havia três resultados possíveis: o pedido de tutela antecipado foi totalmente concedido ao autor, foi apenas parcialmente concedido a ele, ou não foi concedido. A Figura 3.6 resume os desfechos das decisões liminares, considerando apenas os casos em que foi identificado que houve decisão de tutela (N = 2646).
Passados os julgamentos de tutela antecipada, vem a sentença. A sentença, em geral, julga pedidos muito parecidos daqueles que foram julgados antecipadamente. Além da possibilidade de não ter julgamento de mérito, há três resultados de mérito possíveis para as sentenças: totalmente favorável ao autor, parcialmente favorável ou desfavorável. A Figura 3.7 resume os resultados da sentença.
Com base na Figura 3.7, vê-se que número de processos que resulta em extinção sem mérito é significativo. As razões para isso acontecer estão fora do escopo desta pesquisa.
não faz parte do escopo desta pesquisa, mas uma das possíveis causas é o óbito do demandante durante a instrução do processo. A figura 3.8 utilizou com base de dados apenas as sentenças de mérito”.
Sabendo dos resultados das sentenças e das decisões de tutela antecipada, podemos ver se houve continuidade ou não entre os dois momentos. A Figura 3.8 resume essa análise de continuidades e rupturas entre as decisões de tutela antecipada e as sentenças. Retiramos dessa análise as sentenças “sem mérito”, porque não havia como ter alguma continuidade entre as sentenças “sem mérito” e uma decisão de tutela antecipada que julgava o mérito da questão.
O que observamos é que há uma grande taxa de convergência entre a decisão de tutela antecipada com a sentença de mérito. Essa continuidade é maior quando a tutela antecipada é concessiva. Na Figura 3.9 observamos com mais precisão a taxa de continuidade entre as decisões com as sentenças. Novamente, excluímos as decisões sem mérito dessa análise porque elas não apresentam nem continuidades, nem descontinuidades com as decisões de tutela. As decisões sem mérito extinguem o processo, sem conceder ou deixar de conceder o pedido principal. Então não é possível realizar essa comparação incluindo as decisões sem mérito.
Para além da sentença, podemos verificar se houve recurso ou não. A simples existência de um recurso já é um indicativo da litigiosidade em torno dos conflitos. Na Figura 3.10 vemos a presença de recurso nos processos.
Não basta saber se houve recurso ou não. É preciso também saber se os recursos estão relacionados de alguma forma com o resultado das sentenças. Na Figura 3.11 vemos a relação entre a presença de recurso e o resultado das sentenças.
O que observamos é que a proporção de recursos é muito próxima, independente do resultado da sentença. A única exceção são as sentenças sem julgamento de mérito, em que não há muitos recursos.
Ainda, podemos verificar o resultado desses recursos, isto é, se a sentença de primeira instância foi reformada ou não. Na Figura 3.12 vemos a quantidade de casos que foram reformados ou não.
Na Figura 3.12 observamos que, em geral, as sentenças de primeira instância não são reformadas. Mas podemos quebrar esse resultado para sabermos a taxa de reforma das sentenças de acordo com o resultado em primeira instância. A Figura 3.13 mostra essa informação.
O que observamos é que, quando a sentença é desfavorável ao autor, ela tende a ser reformada, e quando a sentença é totalmente favorável, ela tende a ser mantida. Ou seja, o que se observa é uma tendência do Judiciário a ser concessivo em relação aos pedidos de judicialização da saúde.
3.2.5 Pergunta 5: Os pareceres do NATJUS são mencionados nas decisões judiciais?
O NATJUS é um órgão técnico em que profissionais da área da saúde realizam pareceres que visam auxiliar os juízes a decidirem demandas que envolvam o Direito à Saúde, como, por exemplo, se deve ou não ser concedido um serviço ou um medicamento que não consta nas listas oficiais do SUS. O que observamos, inicialmente, é que há uma baixa taxa de aderência do Poder Judiciário a esses pareceres técnicos. Vemos isso na Figura 3.14.
Entretanto, percebemos que o NATJUS vem ganhando maior expressividade na Justiça Federal do Ceará ao longo dos anos. Na Figura 3.15 observamos esta tendência. A Figura se inicia no ano de 2016 pois foi nesta época em que o NATJUS foi criado (Resolução 238/2016 do CNJ), entretanto é preciso frisar dois pontos a respeito dessa série temporal.
Em primeiro lugar, apesar de o Natjus ter sido criado em 2016, naquele momento, ele se voltava especialmente para a Justiça Estadual. Nada impedia a utilização desse sistema pela Justiça Federal, por isso a série temporal se inicia neste ano, mas isso gera uma expectativa de uma baixa aderência aos Natjus em 2016. No final do ano de 2018, a Justiça Federal finalmente foi contemplada, com a criação do e-Natjus Nacional, pelo Termo de Cooperação entre o CNJ e o Ministério da Saúde. Esse Termo de Cooperção culminou no Provimento n. 84/2019 do CNJ, que regulamentou a ferramenta do e-Natjus Nacional. Entretanto, foi somente em 2020 que a utilização dos Natjus começou a se difundir na Justiça Federal, por meio do Ofício-circular n. 9/2020 da Presidência do TRF5, que solicitou o cadastramento dos magistrados na plataforma e-Natjus. Todos esses marcos temporais são importantes para explicar uma parte dos resultados da série temporal.
Em segundo lugar, o baixo número de processos nos anos de 2016 e de 2017 pode ser explicado por outra razão, que não se relaciona com a expansão do Natjus à Justiça Federal. Essa razão seria uma menor quantidade de processos identificados antes de 2019. O que aconteceu foi que em 21 de agosto de 2019, o CNJ atualizou alguns códigos da Tabela Processual Unificada. Entretanto, quando o pedido de dados foi feito à Justiça Federal do Ceará, consideramos apenas os códigos atuais (após a atualização de 2019) para identificar os assuntos relacionados à judicialização da saúde. Assim, os códigos que foram modificados em 2019 não foram considerados na pesquisa, restando somente os códigos que se mantiveram mesmo com a atualização. A título de exemplo, antes da atualização o assunto “Fornecimento de medicamentos” tinha o código 11884, mas a partir de 21 de agosto de 2019, o código deste assunto passou a ser 12487. Isso implica que os anos anteriores à atualização da TPU ficaram com menos processos do que deveriam, por conta dessa mudança nos códigos.
Dessa forma, levando em conta as duas ressalvas a respeito dessa série temporal, podemos explicá-las pelas duas razões que se seguem: os baixos números de citações ao Natjus antes de 2019 podem se explicar tanto pela baixa adesão da Justiça Federal a esse sistema (que só foi acontecer em 2020), como à ausência de alguns processos até 2019.
3.2.6 Pergunta 6: Quanto tempo dura, em média, um julgamento de processo sobre saúde na JFCE?
Os processos de judicialização da saúde são marcados por terem uma alta taxa de pedidos de antecipação de tutela. Isso ocorre porque as demandas envolvem questões sérias de saúde, que não podem esperar meses para receber uma sentença para coenceder medicamentos, tratamentos ou vagas em hospitais. Assim, o primeiro tempo importante a se analisar é o tempo até a decisão de tutela antecipada. Na Figura 3.16 vemos o tempo até a decisão de tutela.
Pela Figura 3.16 vemos que 50% das decisões de antecipação de tutela ocorrem em até 22 dias e que 75% das decisões de antecipação de tutela ocorrem em até 99 dias. É importante notar que os casos ficam estagnados no patamar dos 25%, de forma que 1/4 dos casos nunca se encerram. Isso acontece por dois motivos: ou porque são casos em que ainda não teve uma decisão (censura), ou porque são casos em que não houve pedido de tutela antecipada e, por isso, a decisão não existe, nem irá existir (fração de cura). Ao primeiro problema, chamamos de censura; ao segundo problema, chamamos de fração de cura. Idealmente, deveríamos conseguir filtrar os casos de fração de cura, para ficarmos somente com os casos censurados, entretando, isso não é possível no momento, por ausência de dados sobre os pedidos iniciais.
Após as decisões de tutela, importa saber o tempo até a sentença, que fornece um título executivo definitivo, em comparação com as decisões interlocutórias. A Figura 3.17 apresenta o tempo até a sentença.
Pela Figura 3.17 vemos que 50% das sentenças ocorrem em até 215 dias. O tempo é bastante alto, considerando que as questões tratadas são todas urgentes. Isso se explica pelo fato de que os pedidos de antecipaçaõ de tutela já satisfazem a demanda principal, então, uma vez que a tutela é concedida (em 22 dias), não há mais pressa para se obter uma sentença. Podemos verificar o efeito que uma decisão liminar concessiva tem sobre o tempo da sentença na Figura 3.18.
Na Figura 3.18 observamos que, enquanto nos processos em que houve uma tutela antecipada total ou parcialmente concessiva metade das sentenças ocorre em até 226 dias, nos processos em que a tutela antecipada não foi concedida, o tempo se reduz para 188 dias.
3.2.7 Pergunta 7: Como é o uso de precedentes nos processos?
Como a judicialização da saúde é uma litigância repetitiva, o uso de precedentes auxilia a decidir de forma padronizada, dando maior segurança jurídica aos casos. Para tanto, é importante observarmos a utilização dos precedentes nos tribunais. A Figura 3.19 nos resume esta relação.
Pela figura, observamos que 51.31% das sentenças citam algum precedente, o que pode ser um indicativo da convergência das decisões.
3.2.8 Pergunta 8: Quais são os temas que geram maior divergência nos julgamentos sobre a saúde na JFCE?
Sobre a divergência de temas, podemos verificar o grau de divergência sobre determinados temas com três análises: o resultado das sentenças para cada tema, a presença de recurso para cada tema e a unanimidade no julgamento dos recursos para cada tema. Essas análises se seguem nas Figuras 3.20, 3.21 e 3.22. Todas as análises desconsideraram as sentenças sem julgamento de mérito, uma vez que não faz sentido comparar a divergência de entendimentos de mérito considerando casos em que não houve um julgamento realizando esse tipo de juízo.
O que observamos sobre as decisões é que os temas são, geralmente, muito consensuais entre si, porque, ou os julgamentos são massivamente favoráveis, ou eles são massivamente desfavoráveis. A divergência de temas estaria se víssemos temas com uma proporção de favorável (seja total ou parcialmente) e desfavorável de 50% cada. Os temas mais próximos que temos do 50-50% são “Convênio Médico com o SUS” e “Obrigação de Fazer / Não Fazer”.
Quanto aos recursos, observamos que há 4 assuntos que se destacam em relação à média de recursos, a saber: Comercialização e/ou Utilização sem Restrições de Medicamentos, Tratamento Médico-Hospitalar, Unidade de terapia intensiva (UTI) ou unidade de cuidados intensivos (UCI), Convênio Médico com o SUS. Esses 4 assuntos possuem mais recursos do que a média dos casos, que é de 26.0%.
Por fim, quanto à unanimidade dos julgamentos dos recursos, o que observamos é uma taxa altíssima de ausência de unanimidade, com assuntos chegando até a 26.7% de falta de unanimidade. Para termos uma comparação, em média, os processos civis em São Paulo possuem uma taxa de não unanimidade de apenas 3.2%.